A profecia do Sr Eastman

"A máquina fotográfica é um espelho dotado de memória, porém incapaz de pensar." (Arnold Newman)


Ao criar o slogan “você aperta o botão e nós fazemos o resto”, usada para alardear a primeira máquina fotográfica realmente portátil, a câmera-caixãozinho Brownie, o inventor George Eastman inconscientemente estava prevendo o próprio futuro da fotografia, muito além do que naquele momento ele poderia supor: ao mesmo tempo em que inaugurava a democratização do ato de fotografar, ele o valorizou...e o desvalorizou (!).

Antes que alguém pense tratar-se de um paradoxo produzido depois de eu haver “bebericado algumas cervejas, seguidas de alguns chopps”, explico: a partir da Brownie e das máquinas que a seguiram, tornou-se possível a qualquer um fazer o que antes apenas os “alquimistas” que lidavam com daguerreótipos, câmaras escuras e substâncias como albumina e magnésio, podiam fazer, ou seja, obter e reproduzir fotos.

Qualquer pessoa, repito, passou a ser criadora do ato fotográfico – até hoje, quem faz uma fotografia mal consegue esconder o orgulho pelo seu produto ao receber o menor elogio, tenha sido a foto feita numa máquina digital de último tipo ou em uma “câmera amadora” (neste ponto caberia questionar: é a máquina ou a fotografia por ela produzida que poderia ser chamada de “amadora”? Afinal, o processo físico/químico das velhas câmaras escuras permanece o mesmo! E uma foto obtida em 1880 pode manter-se tão impressionante e atual em qualidade quanto aquela feita há menos de 10 minutos...).

Em meio a essa utopia democrática da fotografia, poucos parecem dar o devido valor ao ato fotográfico, atribuindo o resultado ao que a tecnologia faz. PQP será tão difícil entender que a câmera e a objetiva “último tipo” somente facilitam a produção da foto, mas não apertam o disparador, nem selecionam a imagem que vai para o sensor CCD ou o filme 35 mm?! Quem a faz é o olhar, mas disso ninguém lembra, nem sequer quando admira e compara atentamente uma seqüência de fotos 3x4 numa mesa de bar ou tão logo é alvo de uma fotografia produzida numa câmera digital - depois de exclamar “deix’eu ver” - corre em direção do fotógrafo para ver como “ficou na foto”.

A câmera digital é a Brownie do século XXI e provavelmente, do século XXII. Ela veio proporcionar a liberdade da câmera-caixão do início do século XX, sem que precisemos lidar com produtos químicos, salas escuras, filmes velados, o fedor do flash de magnésio ou tenhamos que compreender o mecanismo da fixação da imagem. A digital é a “além-Brownie”. No entanto - e tão de acordo com o sistema do capital que a produz (reparem na nauseante quantidade de modelos de câmeras e recursos existentes) – a fotografia é apenas um item em meio a várias funções acopladas, entre elas, a eternamente sedutora possibilidade de “fazer vídeos”.

Mas parece-me que o recurso de “gravar” ou “fazer” vídeo das modernas câmeras digitais vem ganhando terreno acima de sua função de foto, pelo menos entre os leigos. E no caso dos aparelhos de celular mais modernos, o “fazer foto” no mais das vezes, permanece limitado ao flagrante do acidente brutal ou da fugacidade da foto que serve de “papel de parede” para o visor do celular, e que será trocado no instante seguinte.

Ainda em relação ao vídeo, a sucessão de imagens em movimento herdeiro do cinema, não pode capturar da mesma maneira o instante eternizado na foto e que dá sentido a esta. Ninguém faz vídeo 3x4 ou 10x15 para colocar na moldura (a menos que seja personagem da série Harry Potter), tampouco usa a câmera digital como filmadora para pensar depois no significado manifesto ou subjetivo de cada “frame” da gravação. Quem faz - na maioria das vezes vídeos tosquinhos - numa digital espera somente um clímax, no conjunto animado de imagens – a queda de uma pessoa, o a explosão de uma bomba, o disparo de uma arma ou o acidente de trânsito. No vídeo, o que contará nas imagens é o auge daquela seqüência, o que nem sempre ocorre em relação ao produto fotográfico.

Ela, a fotografia, pode ter atingido o auge da “democratização”, mas assim como a democracia na política e na vida social precisa ser compreendida para receber a merecida importância, o devido conhecimento do processo por trás de uma fotografia – de acordo com a estética ou o sentido que se busca imprimir - é fundamental para a valorização do olhar de quem está por trás do visor da câmera, seja este óptico ou LCD, tenha sido a foto feita numa câmara escura “buraco de agulha” ou em uma máquina de “trocentos” megapixels.

*Jornalista (jeancarlos_correa@hotmail.com)

3 comentários:

Marcos disse...

polêmico...

Fê Nunes disse...

polêmico, porém, necessário e preciso!

Susan disse...

"...precisa ser compreendida para receber a merecida importância, o devido conhecimento do processo..."

No ponto!