Sobre fotojornalismo e esquizofrenia social

Ao clicar a atividade do poder ilegal na sociedade, o fotojornalista sem dúvida corre risco

Guillermo Planel¹

Diante de estados paralelos implantados pela força, de arbitrariedades praticadas por adolescentes pesadamente armados e drogados, quase sempre mandantes que impõem sua lei em comunidades da periferia, tudo isso aliado ao descaso das políticas públicas sociais praticadas pelos vários âmbitos governamentais e legalmente desacreditadas pela maioria da população, o trabalho do fotojornalista como testemunha de um processo social em conflito, muitas vezes traz um dilema não apenas ético, mas profissional no sentido de até onde se arriscar e quanto vai valer essa imagem na publicação do jornal, se é que ela vai ser publicada na próxima edição.

No confronto, alguns fotógrafos da imprensa são as testemunhas designadas para registrar fatos derradeiros, crueldades e injustiças praticadas por poderes não-oficiais e ilegais, contra a sociedade de uma forma geral e contra a comunidade carente de uma forma direta. O fotógrafo que arrisca a vida ao fotografar o confronto armado entre facções, entre máfias urbanas contra a polícia, na maioria de suas incursões de registro, seu trabalho geralmente é odiado pela comunidade, na maioria das vezes incomoda a polícia, e sempre será perseguido pelo tráfico.

Todos esses processos de denúncia e intervenção são conhecidos e aceitáveis dentro do preconceito que se encerram neles mesmos. Porém, existe uma situação na profissão, que poucas vezes é comentada: o desconforto que esse trabalho provoca perante vários colegas de profissão. No momento em que um profissional de jornal é pautado para registrar um confronto armado, ele em primeiro lugar se prepara psicologicamente para entrar no inferno em breves minutos e, a partir disso, estará exposto a toda sorte de conseqüências com o seu trabalho.

Há pouco tempo, fotos de traficantes armados em uma comunidade do Rio saíram sem crédito do autor da foto em um grande jornal carioca. No meio profissional, a autoria das fotos foi prontamente reconhecida pelo estilo de fotografar do autor, apesar de não constar o crédito na imagem publicada. Nesse momento o jornal está tentando preservar a identidade e a segurança do profissional, já que ele terá de voltar na mesma comunidade, sem saber se será no dia seguinte, em uma semana ou em um ano e, quem sabe, repetir mais uma vez a ousadia de registrar o ilícito, frente a frente, mostrando ao leitor com fidelidade o fato ocorrido, sem manobras ou ajustes.

Ao clicar a atividade do poder ilegal na sociedade, o fotojornalista não está agradando a nenhum envolvido nesse ato, inclusive com possibilidades de vingança imediata, o que, sem dúvida, gera risco. Há quem acredite que esse tipo de registro pode vir a expor outros profissionais involuntariamente a situações de retaliação por parte de bandidos, policiais ou milícias participantes dessa triste realidade. Até mesmo o fotógrafo e o jornalista que registram outros aspectos e fatos da comunidade que não sejam conflitos, podem se sentir expostos à violência por parte de quem se sente ofendido com o registro de suas ações nessas comunidades.

Há quem diga que isso na realidade é a disputa pelo melhor ângulo, pela melhor foto, pela possibilidade da primeira página, o que isoladamente não justificaria o risco e tornaria o fato banal, contrariando fortemente o propósito do registro daquele momento. Ainda mais quando o jornal deixa de publicar excelentes fotos por outros diversos motivos.
Outra realidade nos mostra que devemos ter consciência de que no registro de conflitos armados não existe a possibilidade do jornalista ficar no meio entre os dois pontos do confronto. Ao se posicionar atrás da polícia, o fotojornalista está validando uma atitude de sobrevivência por determinação do próprio poder paralelo, sabendo que o tiro também pode vir pelas costas.

O registro fotográfico de conflitos armados no Rio de Janeiro é um dos poucos processos de conflitos no âmbito mundial onde a esquizofrenia como forma social é determinante no dia-a-dia do trabalho. Com isso, queremos explicar que o fotógrafo sai todo dia de sua casa, passa pela redação do jornal e mergulha em uma guerra civil que não é sua, cobre essa guerra e é cruelmente exposto à violência, à morte sumária e é duramente criticado por sua atuação. É a ida do inferno ao céu em questão de segundos, do bem ao mal em um clique da máquina, do justo ao injusto em uma fechada de pálpebras.

É nesse tipo de comportamento que a esquizofrenia social, se é que existe, se representa através da dualidade de comportamento não desejado pelo individuo que está participando do processo. Diferente de outros teatros de guerra, no Rio de Janeiro o fotógrafo sai diariamente de sua casa, da segurança de sua família, de seus filhos, seus maridos, suas esposas, para ir direto ao estômago do inferno, registrar a crueldade imposta à uma comunidade que invariavelmente não gostaria de se ver exposta naquela situação, e voltar à noitinha, se perguntando se aquela foto que ele registrou de uma criança sendo carregada no colo, no meio de um intenso tiroteio, pelo pai, com o aviso pichado no muro para que os moradores da comunidade não saiam em dia de guerra, vai ser publicada no jornal ou não, valendo a pena ou não ter feito o registro.

Sem dúvida nenhuma, ao analisar mesmo que superficialmente esses assuntos e suas variantes, percebemos que a única verdade plausível é que neste mundo cão, muita gente briga e ninguém tem razão. O registro visual dos fatos, de alguma forma, tenta minimizar esta realidade.

¹Guillermo Planel é fotojornalista e autor do documentário Abaixando a máquina – Ética e dor no fotojornalismo carioca.
Disponível em Portal Photos

3 comentários:

Ferdinand disse...

É muito ainda devido aos fotógrafos que impedem que o massacre da policia seja pior nos morros.

Caio Yan disse...

O trabalho do fotojornalista não tem lado. Ele tá ali para fotografar e passar a informação.

Sara disse...

Esse doc citado é bom. Vale a pena. Assisti e percebi nele os vários lados dos fotojornalistas.